segunda-feira, 6 de abril de 2015

O Emprego da Palavra 'Milagre'

O jornal Ia Vérité, de Lyon, de 16 de setembro de 1866, num artigo intitulado Renan et son école, continha as reflexões seguintes, a propósito da palavra milagre.

"Renan e sua escola não se dão ao trabalho de discutir os fatos, os rejeitam todos à priori; qualificando-os erroneamente de sobrenaturais, e, portanto, impossíveis e absurdos; opõe-lhes um fim de não receber absoluto, e um desdém transcedente. Renan disse lá em cima uma palavra eminentemente verdadeira e profunda: "O sobrenatural não seria outra coisa do qu o sobre divino" Aderimos com toda a nossa energia a esta grande verdade, mas fazemos observar que a própria palavra milagre (mirum, coisa admirável e até então inexplicável) não quer dizer, tanto que lhe seja preciso, intervenção das leis da Natureza, mas bem antes flexibilidade dessas mesmas leis ainda desconhecidas do espírito humano. Diremos mesmo que haverá sempre milagres, porque a ascensão da Humanidade para o conhecimento cada vez mais perfeito, sendo sempre progressiva, este conhecimento terá necessidade constantemente de ser precedido e aguilhoado por fatos que parecerão maravilhosos à época em que se produzirão e não serão compreendidos e explicados senão mais tarde. Um escritor muito acreditado de nossa escola deixou se prendera esta objeção; (Allan Kardec) repete, em muitas passagens de suas obras, que não há nem maravilhoso, nem milagres; é uma advertência resultante do falso sentido de sobrenatural, completamente repelido pela etimologia da palavra. Dizemos nós que se a palavra milagre não existisse, para qualificar os fenômenos ainda em estudo e saindo da ciência vulgar, seria preciso inventá-la, como a mais apropriada e a mais lógica.

"Nada é sobrenatural, nós o repetimos, porque fora da natureza criada e da natureza incriada, não há absolutamente nada concebível; mas há do sobre-humano, quer dizer, dos fenômenos que podem ser produzidos por outros seres inteligentes senão os homens, segundo as leis de sua natureza ou bem produzidos, seja mediatamente, seja imediatamente por Deus, segundo a sua natureza ainda e segundo as suas relações naturais com suas criaturas."

PHILALETHÈS.

Nisto não estamos, graças a Deus, ignorando o sentido etimológico da palavra milagre; nós o provamos em muitos artigos, e notadamente no da Revista do mês de setembro de 1860, página 267. Não é, pois, nem por desprezo nem por inadvertência que repelimos a sua explicação aos fenômenos Espíritas, por extraordinários que possam parecer à primeira vista, mas bem com conhecimento de causa e com intenção.

Em sua acepção usual, a palavra milagre perdeu seu significado primitivo como tantas outras, a começar pela palavra filosofia (amor da sabedoria), da qual se serve hoje para exprimir as idéias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo até o materialismo mais absoluto. Não é duvidoso para ninguém que, no pensamento das massas, milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos aqueles que creem nos milagres se os consideram como efeitos naturais. A Igreja está de tal modo fixada sobre este ponto que ela anatematiza aqueles que pretendem explicar os milagres pelas leis da Natureza. A própria Academia define esta palavra: Ato do poder divino, contrário às leis conhecidas da natureza. ~ Verdadeiro, falso milagre.-Milagre averiguado.- Operar milagres. - O dom dos milagres.

Para ser compreendido por todos, é preciso falar como todo o mundo; ora, é evidente que. se tivéssemos qualificado os fenômenos Espíritas de miraculosos, o público teria desprezado o seu verdadeiro caráter, a menos de empregar, cada vez, uma circunlocução e de dizer que, se são milagres, não são milagres como se os entendem geralmente. Uma vez que a generalidade liga-lhe a ideia de uma derrogação às leis naturais, e que os fenômenos espíritas não são senão a aplicação dessas mesmas leis, é bem mais simples e sobretudo mais lógico dizer sem cerimônia: Não, o Espiritismo não faz milagres. Desta maneira, não há nem desprezo, nem falsa interpretação. Do mesmo modo que os progressos das ciências físicas destruiu uma multidão de preconceitos, e fez entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de efeitos outrora considerados como miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de novas leis, vem restringir ainda o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe o último golpe, é porque não está por toda a parte em odor de santidade, não mais do que a astronomia e a geologia.

Se aqueles que creem em milagres entendessem esta palavra em sua acepção etimológica (coisa admirável), admirariam o Espiritismo em lugar de lhe lançar o anátema; em lugar de pôr Galileu na prisão por ter demonstrado que Josué não pôde deter o sol, ter-lhe-iam trançado coroas por ter revelado ao mundo coisas também admiráveis, e que atestam infinitamente melhor a grandeza e o poder de Deus.

Pelos mesmos motivos, repelimos a palavra sobrenatural do vocabulário espírita. Milagre teria ainda sua razão de ser em sua etimologia, salvo em determinar-lhe a acepção; sobrenatural é um contrassenso do ponto de vista do Espiritismo. A palavra sobre-humano que propõe Philatéthès é igualmente imprópria, em nossa opinião, porque os seres que são os agentes primitivos dos fenômenos Espíritas se bem que no estado de Espírito, não pertencem menos por isto à Humanidade. A palavra sobre-humano tenderia a sancionara opinião há muito tempo acreditada, e destruída pelo Espiritismo, de que os Espíritos são criaturas à parte, fora da Humanidade. Uma outra razão peremptória é que muitos destes fenômenos são o produto direto dos Espíritos encarnados, por consequência dos homens, e em todos os casos, requerem quase sempre o concurso de um encarnado; portanto, não são mais sobre-humanos do que sobrenaturais.

Uma palavra que está também completamente afastada de seu significado primitivo é a de demônio. Sabe-se que daimôn se dizia, entre os Antigos, dos Espíritos de uma certa ordem, intermediários entre os homens e aqueles que se chamavam ctei/ses. Est designação não implicava, na origem, nenhuma má qualidade; ao contrário, era tomada em boa parte; o demônio de Sócrates, certamente, não era um mau Espírito; ao passo que segundo a opinião moderna, proveniente da teologia católica, os demônios são anjos decaídos, seres à parte, essencialmente e perpetuamente votado ao mal.


Para ser consequente com a opinião de Philatéthès, seria preciso que, em respeito à etimologia, o Espiritismo conservasse também a qualificação de demônios. O Espiritismo chamando seus fenômenos de milagres, e os Espíritos demônios, seus adversários teriam tido sorte! Teria sido repelido por três quartas partes que o aceitam hoje, porque nele teriam visto um retorno a crenças que não são mais de nosso tempo. Vestir o Espiritismo com roupas usadas teria sido uma imperícia; teria sido levar um funesto golpe à doutrina que teria tido dificuldade em dissipar as prevenções que as apelações impróprias teriam mantido.

REVISTA ESPÍRITA
MAIO DE 1867

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