O jornal Ia Vérité, de Lyon, de
16 de setembro de 1866, num artigo intitulado Renan et son école, continha
as reflexões seguintes, a propósito da palavra milagre.
"Renan e sua escola não se dão ao
trabalho de discutir os fatos, os rejeitam todos à priori; qualificando-os
erroneamente de sobrenaturais, e, portanto, impossíveis e absurdos; opõe-lhes
um fim de não receber absoluto, e um desdém transcedente. Renan disse lá
em cima uma palavra eminentemente verdadeira e profunda: "O
sobrenatural não seria outra coisa do qu o sobre divino" Aderimos com
toda a nossa energia a esta grande verdade, mas fazemos observar que a própria
palavra milagre (mirum, coisa admirável e até então inexplicável) não
quer dizer, tanto que lhe seja preciso, intervenção das leis da Natureza, mas
bem antes flexibilidade dessas mesmas leis ainda desconhecidas do espírito
humano. Diremos mesmo que haverá sempre milagres, porque a ascensão da Humanidade
para o conhecimento cada vez mais perfeito, sendo sempre progressiva, este
conhecimento terá necessidade constantemente de ser precedido e aguilhoado por fatos
que parecerão maravilhosos à época em que se produzirão e não serão compreendidos
e explicados senão mais tarde. Um escritor muito acreditado de nossa escola
deixou se prendera esta objeção; (Allan Kardec) repete, em muitas passagens de suas
obras, que não há nem maravilhoso, nem milagres; é uma advertência resultante
do falso sentido de sobrenatural, completamente repelido pela etimologia
da palavra. Dizemos nós que se a palavra milagre não existisse, para
qualificar os fenômenos ainda em estudo e saindo da ciência vulgar, seria
preciso inventá-la, como a mais apropriada e a mais lógica.
"Nada é sobrenatural, nós o
repetimos, porque fora da natureza criada e da natureza incriada, não há
absolutamente nada concebível; mas há do sobre-humano, quer dizer, dos
fenômenos que podem ser produzidos por outros seres inteligentes senão os homens,
segundo as leis de sua natureza ou bem produzidos, seja mediatamente,
seja imediatamente por Deus, segundo a sua natureza ainda e segundo as
suas relações naturais com suas criaturas."
PHILALETHÈS.
Nisto não estamos, graças a Deus,
ignorando o sentido etimológico da palavra milagre; nós o provamos em
muitos artigos, e notadamente no da Revista do mês de setembro de 1860, página
267. Não é, pois, nem por desprezo nem por inadvertência que repelimos a
sua explicação aos fenômenos Espíritas, por extraordinários que possam parecer
à primeira vista, mas bem com conhecimento de causa e com intenção.
Em sua acepção usual, a palavra milagre
perdeu seu significado primitivo como tantas outras, a começar pela palavra
filosofia (amor da sabedoria), da qual se serve hoje para exprimir as
idéias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo até o materialismo
mais absoluto. Não é duvidoso para ninguém que, no pensamento das massas,
milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos aqueles que creem
nos milagres se os consideram como efeitos naturais. A Igreja está de tal modo fixada sobre este ponto que ela
anatematiza aqueles que pretendem explicar os milagres pelas leis da Natureza.
A própria Academia define esta palavra: Ato do poder divino, contrário às
leis conhecidas da natureza. ~ Verdadeiro, falso milagre.-Milagre averiguado.- Operar
milagres. - O dom dos milagres.
Para ser compreendido por todos, é
preciso falar como todo o mundo; ora, é evidente que. se tivéssemos qualificado
os fenômenos Espíritas de miraculosos, o público teria desprezado o seu
verdadeiro caráter, a menos de empregar, cada vez, uma circunlocução e de dizer
que, se são milagres, não são milagres como se os entendem geralmente. Uma vez
que a generalidade liga-lhe a ideia de uma derrogação às leis naturais, e que
os fenômenos espíritas não são senão a aplicação dessas mesmas leis, é bem mais
simples e sobretudo mais lógico dizer sem cerimônia: Não, o Espiritismo não faz
milagres. Desta maneira, não há nem desprezo, nem falsa interpretação. Do mesmo
modo que os progressos das ciências físicas destruiu uma multidão de
preconceitos, e fez entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de
efeitos outrora considerados como miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de
novas leis, vem restringir ainda o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe
o último golpe, é porque não está por toda a parte em odor de santidade, não
mais do que a astronomia e a geologia.
Se aqueles que creem em milagres
entendessem esta palavra em sua acepção etimológica (coisa admirável),
admirariam o Espiritismo em lugar de lhe lançar o anátema; em lugar de pôr
Galileu na prisão por ter demonstrado que Josué não pôde deter o sol, ter-lhe-iam
trançado coroas por ter revelado ao mundo coisas também admiráveis, e que atestam
infinitamente melhor a grandeza e o poder de Deus.
Pelos mesmos motivos, repelimos a
palavra sobrenatural do vocabulário espírita. Milagre teria ainda
sua razão de ser em sua etimologia, salvo em determinar-lhe a acepção; sobrenatural
é um contrassenso do ponto de vista do Espiritismo. A palavra sobre-humano
que propõe Philatéthès é igualmente imprópria, em nossa opinião, porque os
seres que são os agentes primitivos dos fenômenos Espíritas se bem que no
estado de Espírito, não pertencem menos por isto à Humanidade. A palavra sobre-humano
tenderia a sancionara opinião há muito tempo acreditada, e destruída pelo Espiritismo,
de que os Espíritos são criaturas à parte, fora da Humanidade. Uma outra razão
peremptória é que muitos destes fenômenos são o produto direto dos Espíritos encarnados,
por consequência dos homens, e em todos os casos, requerem quase sempre o
concurso de um encarnado; portanto, não são mais sobre-humanos do que
sobrenaturais.
Uma palavra que está também
completamente afastada de seu significado primitivo é a de demônio. Sabe-se
que daimôn se dizia, entre os Antigos, dos Espíritos de uma certa ordem,
intermediários entre os homens e aqueles que se chamavam ctei/ses. Est designação
não implicava, na origem, nenhuma má qualidade; ao contrário, era tomada em boa
parte; o demônio de Sócrates, certamente, não era um mau Espírito; ao passo que
segundo a opinião moderna, proveniente da teologia católica, os demônios são
anjos decaídos, seres à parte, essencialmente e perpetuamente votado ao mal.
Para ser consequente com a opinião de
Philatéthès, seria preciso que, em respeito à etimologia, o Espiritismo
conservasse também a qualificação de demônios. O Espiritismo chamando seus
fenômenos de milagres, e os Espíritos demônios, seus adversários
teriam tido sorte! Teria sido repelido por três quartas partes que o aceitam
hoje, porque nele teriam visto um retorno a crenças que não são mais de nosso
tempo. Vestir o Espiritismo com roupas usadas teria sido uma imperícia;
teria sido levar um funesto golpe à doutrina que teria tido dificuldade em
dissipar as prevenções que as apelações impróprias teriam mantido.
REVISTA ESPÍRITA
MAIO DE 1867